O que mais nos falta acontecer quando as mazelas cotidianas unidas às nossas confusões interiores fazem-nos vivenciar as doenças emocionais? Mas… e se por outro lado, através de nossas intempéries nascidas de capítulos diários, surpreendentemente venhamos a descobrir uma saída para viver dentro do universo caótico contemporâneo cercados de muros de incertezas, solidão e abandono de nós mesmos? Minha reflexão pode parecer muito surreal diante de algumas fatalidades insensíveis e nada poéticas em relação a assuntos relacionados as doenças emocionais, manifestada através das almas abatidas, de mentes sobrecarregadas de incertezas, negativismo e incompreensões.
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“A psique, mesmo do esquizofrênico, tem um potencial autocurativo. Através do afeto forças internas podem se manifestar. O inconsciente se expressa nas atividades criativas individuais.”
Acredito que uma pessoa que passa por tratamento mental, friamente chamada de louca, não é um ponto final. Dentro dessa mente habita alguém que reconhece suas dores e tem várias páginas escritas esperando para serem lidas e vividas. Estas vidas podem nos falar com plena lucidez através de várias formas, uma delas se encontra na Arte. Foi assim que perdi a noção do mundo, do espaço, das horas e me refugiei dentro de mim mesma quando parei diante da tela para absorver tudo o que se passava naquela noite de sábado, ao assistir: Nise – O Coração da Loucura (2016), dirigido por Roberto Berliner. O longa nos apresenta a Doutora em psiquiatria Nise da Silveira (1905-1999), uma mulher a frente de sua época, chamada de “rebelde”, por não aceitar métodos agressivos de tratamento, por exemplo, eletrochoque e lobotomia, que pela minha compreensão, é um método que silencia as emoções, eliminando o ser humano, deixando somente um corpo vazio, uma mente sem vida, sem sentimentos, sem nenhuma reação natural.
“Só os loucos e os artistas podem me compreender”.
No início do longa, fui impactada por cada batida insistente e nervosa da Dra. naquele portão alto, sombrio e pintado por tons frios e sem vida do hospital. A partir daquele momento eu e você nos tornamos a visão de Nise e pelos olhos da câmera, entramos em cada cômodo e sofremos por cada estranheza encontrada naqueles médicos sem esperança, sem amor… Tivemos a oportunidade de participar do cotidiano de seus “clientes”, porque era assim que ela os chamava. Trabalhando no setor de Terapia Ocupacional, ela humanizou um hospital psiquiátrico em Engenho de Dentro/RJ, arregaçando as mangas e limpando um cômodo cheio de móveis entulhados… Retirou sujeiras e trouxe luz aos humanos que estavam soterrados na falta de compreensão, aceitação e respeito. Ela chocou ideias desumanas, contagiando aquele ambiente e funcionários com a essência salvadora retiradas da Arte. Manifestando suas verdades, conseguiu olhar, tratar e nos mostrar visceralmente quem eram aquelas pessoas com doenças mentais, mas sem um diagnóstico fechado, e também os casos já considerados como esquizofrênicos. A Dra. Nise começou assim, a lutar as guerras daqueles homens e mulheres, passando a conhecer e a conviver com as histórias individuais, carregadas de fragilidades e abandonos por serem erradamente tratadas como indivíduos que não poderiam mais conviver em sociedade. Ela os tirou de dentro de seus universos, e de suas invisibilidades através de um tratamento humanizado e da sensibilidade resgatada através do contato com os animais. As portas das prisões começaram a ser abertas dentro de cada um que ali apenas sobrevivia.
Prisões ou isolamentos, sejam por conta de punições ou doenças, podem trazer traumas. E depois de se adquirir a liberdade, essas marcas podem desenvolver uma reação muitas vezes, que vem em forma de medo de interagir, viver e conviver em sociedade novamente… Imagino que não seja nada fácil esse tipo de exclusão, assim como não deve ser fácil a sobrevivência de um pássaro que estava preso por longos anos em uma gaiola e um dia experimenta a liberdade. Não se pode saber como ele se sente, mas podemos deduzir que a sua fragilidade poderá levá-lo à morte, por não saber mais como sobreviver livre das grades, onde ele não precisa buscar os próprios meios para sobreviver. Mas cada pessoa tem uma visão específica sobre seu próprio mundo, dentro dos traumas que tenha vivido. Porém, a partir do autoconhecimento sem vitimismo, compreendemos porque existem tempestades, avalanches ou prisões a qualquer momento surgindo em nosso caminho. Cada um desses elementos são matérias de um curso chamado Vida e só quem os reconhece, consegue lidar e tirar a lições necessárias para continuar vivendo e também levando outros a compreender o nosso tão grande universo do existir.
“Porque passei pela prisão, eu compreendo as pessoas e os animais que estão doentes, pobres, que sofrem. Eu me identifico com eles. Sinto-me um deles”.
Assim a Dra. Nise mostrou-nos desde a sua juventude o que é ter força, garra e gana na vida! Pois ter vivido a experiência de ter ficado 18 meses em uma prisão, não destruíram seu intelecto, sua força, sua ousadia e muito menos a vontade de prosseguir seu voo pregando a liberdade através do respeito, do amor ao próximo e a da arte em tantos outros pássaros daquele hospital psiquiátrico.
O resgate dos sonhos, amores, amizades, respeito e convivências em sociedade que se iniciou no cotidiano de seus clientes me fez ter repetidamente o rosto tomado por lágrimas, que começaram a rolar aos 21 minutos e alguns segundos do filme até o seu fim, porque simplesmente compreendi que estamos desesperadamente precisando de Nises em nossos mundos! Precisamos ser Nises para tantos que aguardam um ato real e heroico de cada um de nós. Pessoas aptas a não interromper ou modificar a essência desses clientes que estão passando por fases assoladoras.
“Nosso objetivo principal é entrar no mundo interno do doente, é conhecer este mundo e que ele entre em contato conosco. Não é desejo de que o doente se expresse de forma artística, o que nós queremos é que ele se expresse em imagem, como linguagem. O simples fato de desenhar ou modelar é terapêutico. Ele fica mais leve, diminuem o medo e as tensões.”
Essa brilhante história da brasileira Dra. Nise de Silveira, me mostrou que precisamos aceitá-los e respeitá-los sem imposições de mudanças. Que a única ação que pode nascer do nosso contato com estes, seja a de fazê-los florescer de dentro de seus mundos solitários. Eles sabem de suas limitações e estão saturados de medicamentos. Não precisam de nós como “curadores” de suas dificuldades… Quem nos garantiu que nossas atitudes muito bem intencionadas e aptas nos assuntos sobre doenças, irão resolver seus traumas? A esperança que essas pessoas podem ter em nós não está em soluções e sim em inspirações para que prossigam o seu caminhar. Podemos apresentá-las papéis, telas vazias e argila esperando que através desses elementos, possam contar as muitas histórias, desabafos e choros que podem ser compartilhados através de formas, linhas e infinitas cores. Que sejamos portas abertas da consciência para que eles atravessem com seus traços, fazendo o mais “emocionalmente cego” enxergar que elas são vidas que não existem somente para ocupar mais um espaço no mundo, elas são gente como a gente. Mentes sensivelmente capacitadas a prosseguir seus destinos, sendo reconhecidas pelo que expressam através dos diversos caminhos da arte de viver e não pelas dificuldades que todos nós também temos.
Mais uma vez, Nise de Silveira como funcionária em um hospital psiquiátrico em 1944, revelou profundamente através do filme que a maior ferramenta de trabalho e o melhor medicamento ainda existem dentro dos seres: a sempre inovadora sensibilidade já pertencente a cada um de nós desde que nascemos. Foi com esta antiga forma de olhar o outro com respeito e dignidade que ela venceu com determinação e insistência em meio a tantos funcionários e colegas profissionais naquele lugar, sendo muitas vezes humilhada. Porém, ela nunca paralisou ou deixou de semear através de seu coração a loucura revolucionária da essência da humanização, conseguindo tirar de várias histórias vistas e tratadas como finalizadas, até mesmo pelos familiares, um recomeço, uma esperança que algo pudesse renová-las para expressar a todos que ainda eram donas de suas vontades e compreendiam muito bem suas limitações. Almas reaprendendo a sonhar pela ousadia de viver que lhe foi dada, conseguiram se destacar no cenário artístico daquela época, sendo reconhecidas assustadoramente como grandes artistas plásticos.
Aproveito a história da Dra. Nise, ser humano inigualável, grande admiradora e protetora dos gatos, da arte e do próximo, para me espelhar em sua forma de insistir em bater e esmurrar portas fechadas, acreditando que atrás de muros ou gaiolas poderão existir várias espécies de pássaros, inclusive muitas fênix dispostas a renascer das próprias cinzas que restarem de sua existência para reaprenderem a voar a cada nova oportunidade de um novo dia.
“Gosto de mergulhadores, pessoas que estudam a fundo o mundo interno. A maioria das pessoas tem medo do inconsciente, ficam na superfície. Preciso de mergulhadores com escafandro. Quem quer estudar psicologia que compre um escafandro e mergulhe com o esquizofrênico.”
Este artigo, de minha autoria, foi publicado originalmente no site Genialmente Louco.
é bacana um filme ter embasamento real, tratar de parte da história da psicologia e psiquiatria no pais
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